Fotografar a memória visual dos outros
Este sábado, 13 de Abril, inaugurei no Teatro Municipal de Vila do Conde uma exposição de três trabalhos fotográficos. Estou grata ao município por abrir este espaço a outras manifestações culturais. E grata também ao JP Martins, curador do Foto VC, por me ter convidado para expôr na minha cidade, onde, até 11 de Maio, se pode ver, pela primeira vez por cá, Luz Interior, o projecto que me valeu o Prémio Novo Talento FNAC de 2014, e que circulou por várias lojas daquela cadeia francesa em 2015.
É também uma oportunidade para os vilacondenses verem ou reverem as mulheres de Saudade Levada ao Peito, impressas nos seus panos grandes, alguns deles com marcas do desgaste do mês que, no Verão de 2014, passaram ao sol e à chuva, numa rua de Caxinas. Mais protegidas, elas agora cercam os passos de quem estiver no foyer do teatro, com os seus medalhões fixando para a posteridade a memória visual de entes queridos.
Será entre elas que, numa conversa agendada para 4 de Maio, um sábado, às 16h30, poderei explicar melhor estes projectos. Como nota introdutória para essa sessão, fica a percepção de que a reflexão fotográfica em torno da memória visual é, claramente, o elo comum entre estes três trabalhos: está presente no primeiro, nos desenhos que Ana, uma rapariga cega, faz de esculturas do parque de Serralves; no segundo, nesta necessidade que as minhas conterrâneas sentem de carregar a imagem dos seus mortos consigo, e no terceiro, pelos motivos que passo a explicar através do texto de sala que escrevi como guia de leitura deste projecto a que que chamei Nós, Os Afogados, e que apresento em estreia absoluta.
Sobre Nós, Os Afogados
“Lembro-me, como se fosse hoje, do dia em que este trabalho começou. Estávamos a 10 de Fevereiro de 1988. Eram quase oito da manhã, horas de ir para a escola primária, mas nem cem metros percorri até perceber, na amálgama de gente chorosa em frente à porta da minha tia Alzira, os sinais do desastre: naquela madrugada o barco Cláudio Manuel afundara-se, com oito homens a bordo, dois dos quais da minha família: um irmão e um cunhado do meu pai. Havia dois sobreviventes. Dos outros seis pescadores ainda apareceram quatro corpos, um deles o do meu tio Manuel Coentrão, dono da embarcação. Um dos dois desaparecidos era o meu outro tio, António Flores.
A história tem três décadas, mas continua acesa como uma estrela de fogo no fundo do mar. Em O Lugre, de 1959, Bernardo Santareno fixou, para a ficção do teatro, uma expressão deste sentimento, que donde eu venho é colectivo, e que o escritor escutara em alto mar da boca de um velho pescador, o Ti Zé Caçoilo: “Se todas as vezes e em todos os sítios que este oceano matou um pescador português houvesse, como é de uso na nossa terra, uma alminha iluminada… ai, então estes mares estariam cheinhos de luzes, cheios a perder de vista!”
O luto, na comunidade das Caxinas, tem múltiplas manifestações e idiossincrasias. Conheço mulheres que nunca mais vestiram uma roupa de cor. E aquelas, entre elas, que prendem ao peito medalhões com fotografias das pessoas que perderam, como se se as salvassem, assim, do esquecimento, acabaram por me inspirar para outro projecto. Mas uma das coisas que me beliscou a consciência, ainda criança, no pós-naufrágio, foi a visão de um memorial numa campa, dedicado ao meu tio desaparecido. Ele não estava lá. Mas, na verdade, a minha tia cumpria – como ainda cumpre – os rituais funerários seguidos na comunidade. Ali ela tem uma âncora, um local onde expiar a dor.
Como fotografar esta comunidade sem fotografar esta ausência? E como fotografar esta ausência sem invadir estas memórias, colectivas, por um lado, mas sempre íntimas? Parti para este projecto, ainda inacabado, esperando, respeitosamente, fazer luz sobre estas almas, e voltar, através dos seus memoriais, a dar-lhes voz, como Carsten Jensen fez em Nós os Afogados. Não consigo odiar o mar, como a mãe de Knud Eric, um dos marinheiros de Marstal que povoam este romance magistral a que fui pedir emprestado o título para esta exposição. Mas ali na Dinamarca, como em Caxinas, sabemos o quanto ele, o mar, nos roubou. Pudesse a lembrança apaziguar a sua fome”.
14/04/2019 • #caxinas, #cegueira, #fotografia, #luto, #memória visual, #vila do conde
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